quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Algarve vs. Allgarve

O Verão está acabado. A crise capitalista, começada. Depois das férias, a rentrée teima em não dar sinal de coisa nenhuma até começar a febre natalícia, própria da época seguinte em que a sofreguidão consumista gasta o dinheiro que tem e, muitas vezes, o que não tem.
Em 21 de Setembro último, o cronista José Júdice – um “patrício” algarvio – surgiu na revista Pública com um texto sobre as diferenças entre Algarve e Allgarve, de que deixo aqui algumas passagens. Descubra as diferenças entre duas equações.

Algarve, numa tarde em Setembro. À minha frente, ao longo do vale que a ribeira do Farelo cava há milénios entre cerros calcários cobertos de vegetação pobre e selvagem já acastanhada pela secura, as folhas dum imenso pomar de laranjeiras formam uma fita de cetim untuoso verde-escuro. Aqui e ali, o vermelho de sangue das flores das buganvílias que alegram paredes e muros de casas e hortas. Solitário, o tronco esguio de uma velha palmeira recorta-se no céu azul-claro do fim do Verão. Uma leve brisa espalha um pouco de frescura sob o sol em brasa das cinco da tarde, uma bola quente e alaranjada que aumenta de tamanho à medida que se aproxima do seu destino quotidiano, o mergulho silencioso no horizonte, nas águas geladas do oceano para lá do promontório de Sagres. E lá muito ao fundo, para sul, na direcção da costa e das praias agora já quase desertas, as silhuetas de torres e torres, prédios de habitação e hotéis, agitam-se com a reverberação do calor num estertor moribundo de fim da época balnear (…)
Os laranjais que eu vejo estão abandonados. As velhas árvores, algumas quase centenárias, estão ressequidas. Bebem a pouca água que as mantém vivas da humidade do solo permeado pela ribeira. Ninguém as rega, ninguém as trata, ninguém lhes colhe os frutos que caem no chão e apodrecem porque ninguém os compra. Uns poucos velhos, sobreviventes de uma época não muito distante em que havia lavradores e caseiros, proprietários e trabalhadores rurais, ricos, remediados e pobres que viviam bem ou mal do que o campo dava, e em que não havia fronteiras abertas à importação de frutas e legumes, sentam-se à beira da estrada, abrigados da torreira do sol debaixo duma sombrinha ou dum chapéu de sol de praia de plástico feito na China. Ao lado, numas pobres caixas de madeira que também já viram melhores dias, o letreiro numa tabuleta diz que se vendem laranjas. Nos hipermercados ali perto, que abastecem a marabunta turística, também se vendem laranjas. São do Uruguai, diz a etiqueta.
As casas que eu vejo enfeitadas com o colorido pujante das buganvílias são ruínas. As paredes de taipa a esboroarem ao vento e à chuva porque há muito que ninguém lhes passa a cal protectora por cima. Os telhados de uma água de telha moura caídos porque as vigas apodreceram. A única porta da habitação, quando ainda existe, presa por arames (…)
O Allgarve, como diz o folheto oficial, são “experiências que marcam”. Saído da cabeça tola dum publicitário e adoptado extremosamente pelo ministro Manuel Pinho, o Allgarve tornou-se sinónimo de tudo aquilo que o Algarve não devia ser. Fiadas de prédios absurdos para encaixotar turistas baratos do Norte da Europa, aldeamentos e urbanizações intermináveis numa sucessão de pórticos, colunas, varandinhas e varandins, telhados e telhadinhos de telha lusa encaixados uns nos outros, quilómetros e quilómetros de balaustradas em terraços que ninguém visita e chaminés allgarvias aos molhos em betão pré-fabricado, barbecues com vista para a casa do vizinho e relvados ridículos e mal tratados que ninguém usa atravessados à frente da garagem. Uma sucessão sem fim nem nexo de urbanismo descontrolado, de construção apressada, de arquitectura medíocre, de falso “estilo mediterrânico” desenhado por promotores nórdicos ou, na pior das hipóteses, no estilo algarvio derramado das vivendas com arcobotantes enxertados à ilharga para imitar o antigo (…)
Os 400 mil algarvios e os dez milhões de allgarvios tiveram oportunidade de assistir a exposições e concertos que, de outro modo, talvez não pudessem. De Elvis Costello (um equívoco, com o pessoal da Quinta do Lago e Vilamoura a gritar ao artista “canta o xi!”) a Paolo Conte e Dee Dee Bridgewater, ninguém se pode queixar a não ser talvez do excesso. E do ridículo do programa oficial, em português, insistir em acrescentar que após cada espectáculo haveria um after party na discoteca mais próxima. Ninguém fala português no Algarve, acham eles?
Talvez. A época do circo do turismo vai de Maio a Outubro. Na maior parte dos sítios, já se desmontaram as tendas, já se correram os tapumes, já se fecharam as lojas, os restaurantes e os bares, e já se apagaram as luzes dos condomínios e dos aldeamentos (…)
Vivo no Algarve há tempo suficiente para saber que não se muda nada o carácter das coisas acrescentando-lhe letras. Vivo na fronteira entre os dois Algarves, à beira da EN125. Se der um passo para a direita, estou no Allgarve dos spas, dos resorts, dos after parties, das happy hours, das home of your dreams e da coca-cola com sardinha assada. Se der uma passo para a esquerda, estou no Algarve parado no tempo, dos campos e das hortas abandonadas, das carroças que apodrecem ao lado dos Corsas, Pólos, Fiestas e Civics onde os que ainda moram nas vilas e aldeias do interior se deslocam todos os dias para os empregos no turismo do litoral. E onde as pessoas não vão ver Paolo Conte ou Lou Reed, mas a Ana Rita e o seu acordeão na Festa do Berbigão – cockle party, como diz o cartaz, que aqui também é Algarve.

Sem comentários: