quinta-feira, 30 de outubro de 2008

O Mar como Património


Foi num ambiente de serenidade mas de confiança, que teve lugar a abertura da exposição Tavira, Patrimónios do Mar, em instalações da Câmara Municipal. Os tavirenses viram a área de exposições do Palácio da Galeria transformarem-se naquilo que é a primeira exposição-piloto para um futuro museu municipal.
para quem conhece a cidade "por dentro", sabe bem da importância deste projecto, num concelho que se vira cada vez mais para o turismo cultural, que neste caso conta com os (hoje) incontornáveis audio-visuais, em vez de apresentar uma colecção de peças arqueológicas - que as há - sem suporte imagético que melhor capte as pessoas para a sua compreensão. É possível visionar uma animação multimédia, um videograma, uma instalação video e mesmo um filme documental rodado na Tavira (como era fantástica!) do princípio dos anos '60.
Parabéns à Rita Manteigas, Comissária, e ao Jorge Queiroz, Director do Museu, cujo empenho à frente de uma equipa multidisciplinar e entusiasta soube concretizar este projecto.

O Ensaio Segundo Meirelles


Está para chegar a Portugal o filme Blindness, do brasileiro Fernando Meirelles. Este realizador dos "filmes-catástrofe" do novo século, promete surpreender pela concepção realista de que resultou o desafio de dirigir actores que não representam com os olhos nem, por consequência, têm a mesma forma de interagir entre si. Baseado no colossal (adjectivação minha) livro de José Saramago Ensaio Sobre a Cegueira, não colhe grande consenso, facto que se deve mais ao seu conteúdo do que á sua construção. O The Guardian fala de "pesadelo apocalíptico", descrevendo os seus conteúdos violentadores. O La Nación refere a frieza com que foi recebido, enquanto outros referem "um choque azedo e inesperado" (The Times); "deprimente" abertura do Festival de Cannes. A verdade, meus amigos, é que se trata de uma fidelíssima adaptação à tela de uma obra difícil de um escritor já de si difícil, na proa da literatura contemporânea mundial. Saramago afirmou estar tão contente em ter visionado o filme, como quando acabou de escrever o livro; apesar da violência que está implícita na sua leitura e também na escrita. Diz Saramago: "Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultâneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso".
Veremos o que nos reserva a recepção portuguesa. Entretanto, recomendo vivamente a leitura de Ensaio Sobre a Cegueira. Para os que não vão lêr (pelo menos até lá) fica o "cartão de visita" do frontispício: "Se podes olhar, vê. Se podes vêr, repara".

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Algarve vs. Allgarve

O Verão está acabado. A crise capitalista, começada. Depois das férias, a rentrée teima em não dar sinal de coisa nenhuma até começar a febre natalícia, própria da época seguinte em que a sofreguidão consumista gasta o dinheiro que tem e, muitas vezes, o que não tem.
Em 21 de Setembro último, o cronista José Júdice – um “patrício” algarvio – surgiu na revista Pública com um texto sobre as diferenças entre Algarve e Allgarve, de que deixo aqui algumas passagens. Descubra as diferenças entre duas equações.

Algarve, numa tarde em Setembro. À minha frente, ao longo do vale que a ribeira do Farelo cava há milénios entre cerros calcários cobertos de vegetação pobre e selvagem já acastanhada pela secura, as folhas dum imenso pomar de laranjeiras formam uma fita de cetim untuoso verde-escuro. Aqui e ali, o vermelho de sangue das flores das buganvílias que alegram paredes e muros de casas e hortas. Solitário, o tronco esguio de uma velha palmeira recorta-se no céu azul-claro do fim do Verão. Uma leve brisa espalha um pouco de frescura sob o sol em brasa das cinco da tarde, uma bola quente e alaranjada que aumenta de tamanho à medida que se aproxima do seu destino quotidiano, o mergulho silencioso no horizonte, nas águas geladas do oceano para lá do promontório de Sagres. E lá muito ao fundo, para sul, na direcção da costa e das praias agora já quase desertas, as silhuetas de torres e torres, prédios de habitação e hotéis, agitam-se com a reverberação do calor num estertor moribundo de fim da época balnear (…)
Os laranjais que eu vejo estão abandonados. As velhas árvores, algumas quase centenárias, estão ressequidas. Bebem a pouca água que as mantém vivas da humidade do solo permeado pela ribeira. Ninguém as rega, ninguém as trata, ninguém lhes colhe os frutos que caem no chão e apodrecem porque ninguém os compra. Uns poucos velhos, sobreviventes de uma época não muito distante em que havia lavradores e caseiros, proprietários e trabalhadores rurais, ricos, remediados e pobres que viviam bem ou mal do que o campo dava, e em que não havia fronteiras abertas à importação de frutas e legumes, sentam-se à beira da estrada, abrigados da torreira do sol debaixo duma sombrinha ou dum chapéu de sol de praia de plástico feito na China. Ao lado, numas pobres caixas de madeira que também já viram melhores dias, o letreiro numa tabuleta diz que se vendem laranjas. Nos hipermercados ali perto, que abastecem a marabunta turística, também se vendem laranjas. São do Uruguai, diz a etiqueta.
As casas que eu vejo enfeitadas com o colorido pujante das buganvílias são ruínas. As paredes de taipa a esboroarem ao vento e à chuva porque há muito que ninguém lhes passa a cal protectora por cima. Os telhados de uma água de telha moura caídos porque as vigas apodreceram. A única porta da habitação, quando ainda existe, presa por arames (…)
O Allgarve, como diz o folheto oficial, são “experiências que marcam”. Saído da cabeça tola dum publicitário e adoptado extremosamente pelo ministro Manuel Pinho, o Allgarve tornou-se sinónimo de tudo aquilo que o Algarve não devia ser. Fiadas de prédios absurdos para encaixotar turistas baratos do Norte da Europa, aldeamentos e urbanizações intermináveis numa sucessão de pórticos, colunas, varandinhas e varandins, telhados e telhadinhos de telha lusa encaixados uns nos outros, quilómetros e quilómetros de balaustradas em terraços que ninguém visita e chaminés allgarvias aos molhos em betão pré-fabricado, barbecues com vista para a casa do vizinho e relvados ridículos e mal tratados que ninguém usa atravessados à frente da garagem. Uma sucessão sem fim nem nexo de urbanismo descontrolado, de construção apressada, de arquitectura medíocre, de falso “estilo mediterrânico” desenhado por promotores nórdicos ou, na pior das hipóteses, no estilo algarvio derramado das vivendas com arcobotantes enxertados à ilharga para imitar o antigo (…)
Os 400 mil algarvios e os dez milhões de allgarvios tiveram oportunidade de assistir a exposições e concertos que, de outro modo, talvez não pudessem. De Elvis Costello (um equívoco, com o pessoal da Quinta do Lago e Vilamoura a gritar ao artista “canta o xi!”) a Paolo Conte e Dee Dee Bridgewater, ninguém se pode queixar a não ser talvez do excesso. E do ridículo do programa oficial, em português, insistir em acrescentar que após cada espectáculo haveria um after party na discoteca mais próxima. Ninguém fala português no Algarve, acham eles?
Talvez. A época do circo do turismo vai de Maio a Outubro. Na maior parte dos sítios, já se desmontaram as tendas, já se correram os tapumes, já se fecharam as lojas, os restaurantes e os bares, e já se apagaram as luzes dos condomínios e dos aldeamentos (…)
Vivo no Algarve há tempo suficiente para saber que não se muda nada o carácter das coisas acrescentando-lhe letras. Vivo na fronteira entre os dois Algarves, à beira da EN125. Se der um passo para a direita, estou no Allgarve dos spas, dos resorts, dos after parties, das happy hours, das home of your dreams e da coca-cola com sardinha assada. Se der uma passo para a esquerda, estou no Algarve parado no tempo, dos campos e das hortas abandonadas, das carroças que apodrecem ao lado dos Corsas, Pólos, Fiestas e Civics onde os que ainda moram nas vilas e aldeias do interior se deslocam todos os dias para os empregos no turismo do litoral. E onde as pessoas não vão ver Paolo Conte ou Lou Reed, mas a Ana Rita e o seu acordeão na Festa do Berbigão – cockle party, como diz o cartaz, que aqui também é Algarve.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

António de Macedo: O Bom, o Mau e o Vilão

Para aqueles que não conhecem, tenho o prazer de apresentar António de Macedo. Cineasta, escritor e investigador, Macedo vai passando por merecidas homenagens, ainda que não sejam alvo de grande alarde noticioso. Depois de tímida espécie de homenagem na Cinemateca, onde foi possível ver o seu último filme, Chá Forte com Limão, do já longínquo 1993; recebeu o prémio de Consagração de Carreira da SPA; e mais recentemente foi homenageado no Encontro de Cinema Fantástico Português, que decorreu na Faculdade de Belas Artes de Lisboa.
António de Macedo, o Vilão, pois teve a frontalidade de, enquanto cineasta, enfrentar um sistema que defendia - e defende - como parcial e tendencioso na atribuição de subsídios para que se façam filmes no nosso país; facto que lhe valeu uma guerra com o então-poder e o elevado preço de não voltar a filmar.
António de Macedo, o Mau, pois o seu cinema é injustamente rotulado por quem faz de opinion-maker como kitsch, vulgar e desinteressante, em vez de inventivo e caso singular de uma obra coerente; ao longo da quase totalidade das suas 15 longas-metragens, fora o grande resto.
António de Macedo, o Bom, pois os seus filmes são feitos com base em ideias do seu interesse – e não vou referir que há aqui alguns dos maiores êxitos de bilheteira do luso cinema –, que é possível juntar num grande grupo a que se pode chamar exotérico-científico; nunca se tendo desviado desse mesmo caminho; e além do mais, tendo sido o único realizador que verdadeiramente se interessou de forma preocupada, investigando e solucionando novos horizontes técnicos. O único que em Portugal se debruçou sobre a problemática dos efeitos visuais, agindo como (também) investigador; e isto nos anos 70 e 80.
O seu trabalho de escritor é já um percurso coerente no campo exotérico e neo-gótico, campos em que é investigador; e para trás ficam manifestações de interesse por campos musicais concretos e em cinema. Fez parte do verdadeiro e restrito núcleo central do Cinema Novo Português, juntamente com Paulo Rocha, Fernando Lopes e António da Cunha Telles. É neste âmbito que surge a sua primeira longa-metragem de ficção, Domingo à Tarde, no ano de 1965. As outras são:
Sete Balas Para Selma, 1967
Nojo aos Cães, 1970
A Promessa, 1972
O Rico, o Camelo e o Reino ou O Princípio da Sabedoria, 1975
As Horas de Maria, 1976
O Príncipe com Orelhas de Burro, 1979
Os Abismos da Meia-Noite ou As Fontes Mágicas de Gerénia, 1983
Os Emissários de Khalôm, 1987
A Maldição de Marialva, 1990
Chá Forte com Limão, 1993